quinta-feira, 30 de junho de 2011

Poemas de José Saramago

Aprendamos o Rito


Põe na mesa a toalha adamascada,
Traz as rosas mais frescas do jardim,
Deita o vinho no copo, corta o pão,
Com a faca de prata e de marfim.

Alguém se veio sentar à tua mesa,
Alguém a quem não vês, mas que pressentes.
Cruza as mãos no regaço, não perguntes:
Nas perguntas que fazes é que mentes.

Prova depois o vinho, come o pão,
Rasga a palma da mão no caule agudo,
Leva as rosas à fronte, cobre os olhos,
Cumpriste o ritual e sabes tudo.



Signo do Escorpião

Para ti, saberás, não há descanso,
A paz não é contigo nem fortuna:
O signo assim ordena.
Pagam-te os astros bem por essa guerra:
Por mais curta que a vida for contada,
Não a terás pequena.



Intimidade

No coração da mina mais secreta,
No interior do fruto mais distante,
Na vibração da nota mais discreta,
No búxio mais convolto e ressoante,

Na camada mais densa da pintura,
Na veia que do corpo mais nos sonde,
Na palavra que diga mais brandura,
Na raiz que mais desce, mais esconde,

No silêncio mais fundo desta pausa,
Em que a vida se fez perenidade,
Procuro a tua mão, decifro a causa
De querer e não crer, final, intimidade.


Do livro "Poemas Possíveis"


Um abraço saramaguiano

quinta-feira, 23 de junho de 2011

As Árvores da Minha Rua

As árvores da minha rua
Gritam
Quando a serra as transforma
Em corpo amputado;
Quando as deixa sem vida
E sem sombras de afago

As árvores da minha rua
Gritam
Quando alguém sem carinho
Golpeia os seus ramos
E num repelão
Os atira ao pó do caminho

As árvores da minha rua
Já não podem gritar
Já não oram ao céu.
E naquela praceta
O trinado dos melros
Emudeceu.

                         Eugénia Edviges



Com um abraço de tristeza.

domingo, 19 de junho de 2011

FANTASMA

A vida findou.
À cova desci.                                              
No cimo,
Murmúrios...
Lamento…           
Meus versos ficaram
Ao sabor do vento.
Ó vento que passas
Semeia os meus versos
No céu, no deserto,
No mar sem ter fim.
Que os homens os cantem,
Que sejam gritados,
Que falem de mim!
Meus versos são rios,
São bolas de neve,
São estrelas cadentes
Do céu a brotar.
Ó nuvens imploro!
Deponham meus versos
Nas águas do mar!
Que o mar os engula,
Que as ondas os escrevam
Na areia doirada.
Que sejam louvados,
Em coros cantados
Na luz prateada!
Ó sol que alumias
Sementes fecundas
Dá vida aos meus versos!
Que cresçam dispersos
Em terras imundas!
Que sejam gerados em sonhos
Em fados, em palavras de amor.
Que vibrem em lábios
De deuses,
De amantes,
De algum trovador!

Fantasma sou eu
Dos meus versos, grilhão…
Sou palavra viva, sou alma,
Sou assombração! 
  
                                            Eugénia Edviges

Um grande abraço 


quarta-feira, 8 de junho de 2011

Dois Poemas de Pablo Neruda

dois poemas de Pablo Neruda do livro "Cem Poemas de Amor" editado pela Campo das Letras




Não te quero senão porque te quero
e de querer-te a não querer-te chego
e de esperar-te quando não te espero
passa meu coração do frio ao fogo.

Quero-te apenas porque a ti eu quero
A ti odeio sem fim e, odiando-te, te suplico,
e a medida do meu amor viajante
é não ver-te e amar-te como um cego.

Consumirá talvez a luz de Janeiro,
o seu raio cruel, meu coração inteiro,
roubando-me a chave do sossego.

Nesta história apenas eu morro
e morrerrei de amor porque te quero,
porque te quero, amor, a sangue e fogo.








Tenho fome da tua boca, da tua voz,  do teu cabelo,
e ando pelas ruas sem comer, calado,
não me sustenta o pão, a aurora me desconcerta,
busco no dia o som líquido dos teus pés.

Estou faminto do teu riso saltitante,
das tuas mãos cor de furioso celeiro,
tenho fome da pálida pedra das tuas unhas,
quero comer a tua pele como uma intacta amêndoa.

Quero comer o raio queimado na tua formosura,
o nariz soberano do rosto altivo,
quero comer a sombra fugaz das tuas pestanas

e faminto venho e vou farejando o crepúsculo
à tua procura, procurando o teu coração ardente
como um puma na solidão de Quitratúe. *




* Quitratúe : é um lugar povoado da região de Araucanía, no Chile.





Um grande abraço

segunda-feira, 6 de junho de 2011

Um Poema de Sofia

Do livro "Obra Poética I", Editorial Caminho




AS ROSAS


Quando à noite desfolho e trinco as rosas
É como se prendesse entre os meus dentes
Todo o luar das noites transparentes,
Todo o fulgor das tardes luminosas,
O vento bailador das Primaveras,
A doçura amarga dos poentes,
E a exaltação de todas as esperas.




Um abraço forte como as palavras

DIAS-NÃO

 

No apogeu da vida,

Paradoxalmente,
Caímos no abismo de incertezas.
E como autómatos
Fingimos agarrar
Aquilo que outrora
Vislumbrámos com indiferença.
No apogeu da vida
Tudo o que nos prometem
Vai acontecer,
Porque já não temos muito tempo
Para deixar de acreditar.
No apogeu da vida
Os sonhos deixam de ter importância,
E desmoronam-se
Como se desmorona
Um castelo de cartas
Por não ter utilidade.
No apogeu da vida
Pensamos...Pensamos...
E ficamos com a certeza
Que só a escuridão
Nos poderá libertar do nada.


                                 Eugénia Edviges

Um abraço pensativo

sexta-feira, 3 de junho de 2011

Leonard Cohen


Leonard Cohen ganhou o Prémio Príncipe das Astúrias das Letras, prémio dedicado a personalidades no âmbito da literatura ou da línguistica , cuja obra represente uma contribuição relevante para a cultura universal. Leonard é o poeta das canções, romancista e músico. escreveu sobre a perseguição dos judeus durante a segunda guerra mundial e sobre o amor e desventuras românticas como podemos apreciar nos temas Suzanne e Chelsea Hotel.  Publicou o seu primeiro livro de poemas em 1956 Let us Compare Mythologies, seguindo-se o romance O Jogo Favorito em 1963 e a colecção de poesia Flowers for Hitler a par com a sua produção musical.

Em 2008 deu dois espetáculos em Portugal, voltando em 2010, espetáculo a que eu tive o enorme prazer de assistir porque Leonard Cohen é um dos meus músicos favoritos.





A digressão que fez entre 2008 e 2010 está registada neste álbum que é um pequeno tesouro: "Songs from the Road



Eis o livro da autoria de Marc Hendrickx, editado em Portugal por Guerra e Paz, Editores. "Muito longe de ser uma biografia, aqui o autor procura, através de um registo imtimista, as respostas para questões sobre o Homem, a felicidade, a tomada de consciência, a fé, o objetivo de vida, o amor, a velhice e a morte." (nota da editora)



Os Prémios Príncipe das Astúrias foram fundados em 1981 e contemplam as áreas da Comunicação e Humanidades, Ciências Sociais, Artes, Letras, Investigação Científica e Técnica, Cooperação Internacional, Concórdia e Desportos. São entregue no mês de Outubro em cerimónia solene conduzida pelo Príncipe das Astúrias, em Oviedo, capital do Principado das Astúrias.


Apreciem a letra, a música e a voz deste grande autor na canção Everybody Knows:
http://youtu.be/wh9AC0jCGjY


Um grande abraço

quarta-feira, 1 de junho de 2011

Viver Ontem

Foi na minha rua de infância que eu brinquei. Foi lá, quando a manta da noite nos tapava, que eu e todas as outras crianças amigas jogávamos à bola, fazíamos corridas para ver quem chegava primeiro ao Largo do Calvário, brincávamos às escondidas e... fazíamos patifarias, como tocar às campainhas das portas. Era um nunca acabar de brincadeiras pela noite fora. E nem as ameaças das avós ou os ralhos das mães nos faziam arredar pé em direção à cama. Só nos íamos deitar quando o cansaço tomava conta de nós, as sombras da noite começavam a ficar tenebrosas ou algum, já sem forças para continuar, dormitava em qualquer degrau de uma porta. E a minha rua tem um nome lindo: Rua do Pinheiro! Sim, a minha rua merece um prémio: um poema escrito pela minha mão.

        


        VIVER ONTEM
       
       

        Hoje estaquei.
E fui ver aquela rua
Onde brinquei quando vivi.
Quando as noites eram crianças
Que se juntavam a nós.
E as avós,
Mãos cruzadas nos regaços,
Olhavam com abraços
De ternura.
E diziam:
- Horas de deitar!
- Olhem os “homens do sangue”
E por momentos
Crescia a cruz do Calvário
Entre os clarões do luar...
Mas os nossos corações
Cabiam na rua inteira.
E vá de roda que é cedo,
Vá de cantar que as canções
Afugentam os malvados!
Era o jogo do Anel,
Da Semana, ao Pau
Queimado, e com ardor
Procurava-se a mão
Do nosso primeiro amor...!
E os sonhos eram certezas.
Promessas deste futuro
Que se romperam no tempo
Dos bibes e dos calções...

 E à esquina deserta murmuro:

Oxalá quando eu chegar
Ao limite desta vida
Haja alguém que me embale
E me cante uma cantiga...

                                                 Eugénia Edviges



Um grande abraço do tamanho da minha rua
Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...